quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Feminicídio, realidades e tabus


Susana Merino *

Adital -

  Tradução: ADITAL
No resta dúvida de que existe uma
 taxativa diferença entre, por exemplo, a lapidação de mulheres em 
alguns países islâmicos e a 
frequente tortura e morte de mulheres
 em Ciudad Juárez (México).
A primeira está insolitamente
 amparada pela lei ou pelo Estado,
 enquanto que as segundas parecem 
estar protegidas pelo silêncio cúmplice 
das autoridades civis e policiais da região.
No entanto, no primeiro caso, 
nos sentimos horrorizadas pela
 inqualificável crueldade de um 
castigo que conduz à morte;
 e, no outro, a fria menção das cifras.
 Porém, apesar de que o número de mulheres assassinadas seja consideravelmente
 maior na fronteira do norte mexicano, 
o que nos assombra, 
nos descobrimos quase indiferentes.
Parece que a reiteração de tão inqualificável
 fenômeno outorga aos seus autores
 uma espécie de "patente" para o crime 
e parece também que, ao fazer parte 
das estatísticas, o horror deixa 
de golpear nossas consciências. 
Um assassinato, uma morte próxima,
 uma vítima identificada nos comovem;
 porém, os crimes massivos não deixam 
marcas e até em situações bélicas 
chegam a ser cinicamente qualificados 
e aceitos como "danos colaterais".
Diante da condenação por lapidação 
da iraniana Sakineh Ashtianí e 
da nigeriana Amina Lawal, a sociedade
 se mobilizou e centenas de milhares
 de pessoas em todo o mundo assinaram
 cartas nas quais pediam, em ambos os casos,
 e conseguiram a anulação do castigo.
 Um castigo que, certamente,
 não está nem aprovado e nem estabelecido
 pelo Alcorão, mas que tem sua origem
 na tradição judaico-islâmica e pode ser
 aplicado também aos homens.
 Esse tipo de mobilizações aparentemente
pintado com certo ranço anti-islâmico 
não encontra correlato para as 
múltiplas denúncias mexicanas 
que atingem a um número crescente
 de mulheres entre 14 e 25 anos.
Em Ciudad Juárez, cerca da fronteira
 mexicano-estadunidense, 
segundo organizações não 
governamentais, foram executados
 mais de 350 assassinatos de mulheres e, aproximadamente, 400 desaparições na 
última década, o que as autoridades,
 por incompetência ou amedrontadas,
 costumam qualificar como fruto da 
violência doméstica.
No entanto, segundo as investigações
 realizadas pela Anistia Internacional,
 muitos dos crimes têm suas raízes
 na discriminação, apesar de que sejam
 consideradas também outras hipóteses
 relacionadas ao narcotráfico, ao tráfico
 de mulheres, ao tráfico de órgãos
 e aos filmes snuff, um gênero 
também conhecido como white heat
 ou the real thing, nos quais as mulheres 
são torturadas, violentadas e assassinadas
 com o único objetivo de registrar 
esses fatos através de algum meio 
audiovisual para, em seguida,
 comercializá-los por quantias incalculáveis.
 Sobre essa última suposição, 
não foram encontradas provas que
 possam respaldá-la, apesar de que
 não parece tão disparatado pensar 
que em nossa enferma sociedade
 não existam indivíduos que desfrutem -intelectua
ou comercialmente- com esse tipo de produções.
Alguns analistas sustentam também que poderia
 tratar-se de macabros rituais celebrados 
com o objetivo de estabelecer a coesão
 entre membros de grupos mafiosos e
 selar a pertença ao grupo, por parte dos assassinos,
 com pactos de sangue.
Segundo a investigadora Rita Laura Segato,
 "os feminicídios de Ciudad Juárez não são
 crimes comuns de gênero, mas crimes 
corporativos e, mais especificamente,
 são crimes de segundo Estado (...)
 que administra os recursos, direitos
 e deveres próprios de um Estado paralelo, 
estabelecido firmemente na região 
e com tentáculos nas cabeceiras do país".
 Porém, o mais alarmante é que esta lacra
 chegou também ao chamado
 "triângulo da violência":
 Guatemala, El Salvador e Honduras,
 segundo a descrição cunhada pelas
 Nações Unidas, que alcançou as mais
 altas taxas de feminicídios da região
 já não relacionadas com os conflitos armados, 
que assolaram a esses países em um passado
 não muito distante. E poderiam 
continuar estendendo-se.
E se continuamos rumo ao sul, 
podemos ver que, tampouco, 
nosso país está isento de um 
desmedido incremento das consequências
 que até agora pareciam limitar-se a 
casos isolados; porém, cada vez mais
 frequentes do que também aqui se
 qualifica como produto da violência familiar.
 As mortes de mulheres queimadas 
com álcool ou com benzina em 
"acidentes domésticos" que,
curiosamente, não acontecem 
quando a mulher está sozinha,
 mas diante da (impotente?) presença
 do marido ou companheiro, tem aumentado
 desde um primeiro acontecimento no qual
 a justiça determinou a impossibilidade 
de provar a culpabilidade da
 principal testemunha presencial
 (nesse e em quase todos
 os casos, o marido) por ocorrer em 
âmbito privado e ser muito difícil 
estabelecer se realmente o fato é
 atribuível a um acidente ou a um assassinato.
Toda essa manifesta agressividade masculina
 em relação à mulher não é uma consequência
 a mais das condições de vida contemporânea
 a que costumamos atribuir os males que nos
 rodeiam; mas, parece arraigar 
no mais profundo primitivismo humano.
 Desde o princípio dos
tempos, privilegiar a morte tem sido um
 denominador comum de muitas culturas, 
não de outro modo se entende a exaltação
 do heroi, do guerreiro, do combatente
 encarnando sempre os valores do arrojo,
 da audácia, da valentia, da virilidade, da 
coragem, da intrepidez em função de que?
 Somente em função da morte, uma função
 reservada aos homens da tribo, do Estado,
 do império..., na qual as
 mulheres (ou suas equivalentes,
 as nórdicas ‘walkirias' ou as
amazonas gregas) participaram
 só mitologicamente, partilhando, 
em suas condições de deusas, 
os campos de batalha.
Enquanto que a função de dar a vida,
 que foi conferida somente à mulher, 
foi secularmente subestimada e confinada
 ao rotineiro âmbito doméstico e sua
importância diluída até quase desaparecer
 entre as pedestres tarefas cotidianas, 
das panelas e pratos, das chupetas, 
mamadeiras e cadernos escolares,
 produto de uma cultura certamente
 elaborada só por metade da humanidade.
 Meia humanidade que necessitou construir
 um imaginário de força, de vigor,
 de invencibilidade para dissimular 
talvez a frustrante sensação de esterilidade
 e de impotência provocada pelo mistério
 da gravidez e do parto, juntamente com 
a convicção de que são coisas às quais,
apesar de sua força e de seu engenho, 
jamais poderia ter acesso.
Tudo isso parece ter raízes tão profundas
 que não só em nossa civilização
judaico-cristã encontramos evidências
 certas e reiteradas de subestimação, 
de submissão, de menosprezo
 como reação ao temor que a mulher gera ao
 parecer dotada de "poderes" que
 escapam completamente ao 
arbítrio dos homens.
 Os estudos de antropologia têm 
demonstrado que é habitual em todas
 as culturas que os homens experimentem
 certo sentimento de inferioridade diante
 da capacidade procriadora da mulher; 
sentimento que tendem a reverter
 assumindo para com ela condutas
 prepotentes tildadas de menosprezo
 e humilhação. Um temor que também 
deve ter jogado um importante papel 
no julgamento e condenação das bruxas
 medievais.
Importantes e minuciosos estudos realizados
 nos códices maias e astecas põem em relevo 
que "O homem, em sua função de genitor,
 brilha por sua ausência. Se o nascimento
 por partenogênese de deuses tão
 importantes como Quetzalcóatl e
 Huitzilopochtli não deixa de reforçar a
 importância da figura
 materna pode suscitar também angústias
 e inquietações no seio de uma população
 masculina incapaz de legitimar agora a 
primazia do falo e, portanto, de seu poder".
Diz a antropóloga francesa Françoise Héritier 
que "não é o sexo, mas a fecundidade o que
 representa a verdadeira diferença entre o
 masculino e o feminino" e agrega Nicolas Balutet
 "que, na sociedade asteca, a fecundidade estava
 na base das angústias do homem. O rechaço às mulheres que expressam as crenças e as superstições
 vai além que o tabu relacionado 
com os fluidos menstruais e do parto".
 (La puesta en escena del
 miedo a la mujer fálica durante
 las fiestas aztecas" - Contribuciones
 desde Coatepec, UNAM, México).
De modo que, para terminar, pese 
aos grandes 
avanços alcançados pelas mulheres
 em matéria de igualdade de direitos
 nas sociedades contemporâneas,
 é evidente que nos resta
 ainda um longo caminho a percorrer para 
superar e remover tabus, usos e costumes 
que, não por atávicos e ancestrais estamos 
condenadas a suportar eternamente, Eles e 
nós devemos encontrar o modo de integrar 
nossas diferentes capacidades, de construir
 uma relação homem-mulher baseada no
 reconhecimento e na aceitação de nossas
 diferenças, capaz de afugentar os fantasmas 
desse passado que tem gerado e continua
 gerando tanta dor e para poder entoar,
 juntos, um canto à vida, que é o prodígio
 mais maravilhoso com que Deus ou a Criação
 nos honrou.

* Arquiteta argentina, editora do informativo semanal "El Grano de Arena", de ATTAC Internacional




(fonte:www.adital.com.br)

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