Susana Merino *
Adital -
Tradução: ADITAL
No resta dúvida de que existe uma taxativa diferença entre, por exemplo, a lapidação de mulheres em alguns países islâmicos e a frequente tortura e morte de mulheres em Ciudad Juárez (México). A primeira está insolitamente amparada pela lei ou pelo Estado, enquanto que as segundas parecem estar protegidas pelo silêncio cúmplice das autoridades civis e policiais da região. |
No entanto, no primeiro caso,
nos sentimos horrorizadas pela
inqualificável crueldade de um
castigo que conduz à morte;
e, no outro, a fria menção das cifras.
Porém, apesar de que o número de mulheres assassinadas seja consideravelmente
maior na fronteira do norte mexicano,
o que nos assombra,
nos descobrimos quase indiferentes.
Parece que a reiteração de tão inqualificável
fenômeno outorga aos seus autores
uma espécie de "patente" para o crime
e parece também que, ao fazer parte
das estatísticas, o horror deixa
de golpear nossas consciências.
Um assassinato, uma morte próxima,
uma vítima identificada nos comovem;
porém, os crimes massivos não deixam
marcas e até em situações bélicas
chegam a ser cinicamente qualificados
e aceitos como "danos colaterais".
fenômeno outorga aos seus autores
uma espécie de "patente" para o crime
e parece também que, ao fazer parte
das estatísticas, o horror deixa
de golpear nossas consciências.
Um assassinato, uma morte próxima,
uma vítima identificada nos comovem;
porém, os crimes massivos não deixam
marcas e até em situações bélicas
chegam a ser cinicamente qualificados
e aceitos como "danos colaterais".
Diante da condenação por lapidação
da iraniana Sakineh Ashtianí e
da nigeriana Amina Lawal, a sociedade
se mobilizou e centenas de milhares
de pessoas em todo o mundo assinaram
cartas nas quais pediam, em ambos os casos,
e conseguiram a anulação do castigo.
Um castigo que, certamente,
não está nem aprovado e nem estabelecido
pelo Alcorão, mas que tem sua origem
na tradição judaico-islâmica e pode ser
aplicado também aos homens.
Esse tipo de mobilizações aparentemente
pintado com certo ranço anti-islâmico
não encontra correlato para as
múltiplas denúncias mexicanas
que atingem a um número crescente
de mulheres entre 14 e 25 anos.
Em Ciudad Juárez, cerca da fronteira
mexicano-estadunidense,
segundo organizações não
governamentais, foram executados
mais de 350 assassinatos de mulheres e, aproximadamente, 400 desaparições na
última década, o que as autoridades,
por incompetência ou amedrontadas,
costumam qualificar como fruto da
violência doméstica.
mexicano-estadunidense,
segundo organizações não
governamentais, foram executados
mais de 350 assassinatos de mulheres e, aproximadamente, 400 desaparições na
última década, o que as autoridades,
por incompetência ou amedrontadas,
costumam qualificar como fruto da
violência doméstica.
No entanto, segundo as investigações
realizadas pela Anistia Internacional,
muitos dos crimes têm suas raízes
na discriminação, apesar de que sejam
consideradas também outras hipóteses
relacionadas ao narcotráfico, ao tráfico
de mulheres, ao tráfico de órgãos
e aos filmes snuff, um gênero
também conhecido como white heat
ou the real thing, nos quais as mulheres
são torturadas, violentadas e assassinadas
com o único objetivo de registrar
esses fatos através de algum meio
audiovisual para, em seguida,
comercializá-los por quantias incalculáveis.
Sobre essa última suposição,
não foram encontradas provas que
possam respaldá-la, apesar de que
não parece tão disparatado pensar
que em nossa enferma sociedade
não existam indivíduos que desfrutem -intelectual
ou comercialmente- com esse tipo de produções.
Alguns analistas sustentam também que poderia
tratar-se de macabros rituais celebrados
com o objetivo de estabelecer a coesão
entre membros de grupos mafiosos e
selar a pertença ao grupo, por parte dos assassinos,
com pactos de sangue.
tratar-se de macabros rituais celebrados
com o objetivo de estabelecer a coesão
entre membros de grupos mafiosos e
selar a pertença ao grupo, por parte dos assassinos,
com pactos de sangue.
Segundo a investigadora Rita Laura Segato,
"os feminicídios de Ciudad Juárez não são
crimes comuns de gênero, mas crimes
corporativos e, mais especificamente,
são crimes de segundo Estado (...)
que administra os recursos, direitos
e deveres próprios de um Estado paralelo,
estabelecido firmemente na região
e com tentáculos nas cabeceiras do país".
Porém, o mais alarmante é que esta lacra
chegou também ao chamado
"triângulo da violência":
Guatemala, El Salvador e Honduras,
segundo a descrição cunhada pelas
Nações Unidas, que alcançou as mais
altas taxas de feminicídios da região
já não relacionadas com os conflitos armados,
que assolaram a esses países em um passado
não muito distante. E poderiam
continuar estendendo-se.
"os feminicídios de Ciudad Juárez não são
crimes comuns de gênero, mas crimes
corporativos e, mais especificamente,
são crimes de segundo Estado (...)
que administra os recursos, direitos
e deveres próprios de um Estado paralelo,
estabelecido firmemente na região
e com tentáculos nas cabeceiras do país".
Porém, o mais alarmante é que esta lacra
chegou também ao chamado
"triângulo da violência":
Guatemala, El Salvador e Honduras,
segundo a descrição cunhada pelas
Nações Unidas, que alcançou as mais
altas taxas de feminicídios da região
já não relacionadas com os conflitos armados,
que assolaram a esses países em um passado
não muito distante. E poderiam
continuar estendendo-se.
E se continuamos rumo ao sul,
podemos ver que, tampouco,
nosso país está isento de um
desmedido incremento das consequências
que até agora pareciam limitar-se a
casos isolados; porém, cada vez mais
frequentes do que também aqui se
qualifica como produto da violência familiar.
As mortes de mulheres queimadas
com álcool ou com benzina em
"acidentes domésticos" que,
curiosamente, não acontecem
quando a mulher está sozinha,
mas diante da (impotente?) presença
do marido ou companheiro, tem aumentado
desde um primeiro acontecimento no qual
a justiça determinou a impossibilidade
de provar a culpabilidade da
principal testemunha presencial
(nesse e em quase todos
os casos, o marido) por ocorrer em
âmbito privado e ser muito difícil
estabelecer se realmente o fato é
atribuível a um acidente ou a um assassinato.
Toda essa manifesta agressividade masculina
em relação à mulher não é uma consequência
a mais das condições de vida contemporânea
a que costumamos atribuir os males que nos
rodeiam; mas, parece arraigar
no mais profundo primitivismo humano.
Desde o princípio dos
tempos, privilegiar a morte tem sido um
denominador comum de muitas culturas,
não de outro modo se entende a exaltação
do heroi, do guerreiro, do combatente
encarnando sempre os valores do arrojo,
da audácia, da valentia, da virilidade, da
coragem, da intrepidez em função de que?
Somente em função da morte, uma função
reservada aos homens da tribo, do Estado,
do império..., na qual as
mulheres (ou suas equivalentes,
as nórdicas ‘walkirias' ou as
amazonas gregas) participaram
só mitologicamente, partilhando,
em suas condições de deusas,
os campos de batalha.
em relação à mulher não é uma consequência
a mais das condições de vida contemporânea
a que costumamos atribuir os males que nos
rodeiam; mas, parece arraigar
no mais profundo primitivismo humano.
Desde o princípio dos
tempos, privilegiar a morte tem sido um
denominador comum de muitas culturas,
não de outro modo se entende a exaltação
do heroi, do guerreiro, do combatente
encarnando sempre os valores do arrojo,
da audácia, da valentia, da virilidade, da
coragem, da intrepidez em função de que?
Somente em função da morte, uma função
reservada aos homens da tribo, do Estado,
do império..., na qual as
mulheres (ou suas equivalentes,
as nórdicas ‘walkirias' ou as
amazonas gregas) participaram
só mitologicamente, partilhando,
em suas condições de deusas,
os campos de batalha.
Enquanto que a função de dar a vida,
que foi conferida somente à mulher,
foi secularmente subestimada e confinada
ao rotineiro âmbito doméstico e sua
importância diluída até quase desaparecer
entre as pedestres tarefas cotidianas,
das panelas e pratos, das chupetas,
mamadeiras e cadernos escolares,
produto de uma cultura certamente
elaborada só por metade da humanidade.
Meia humanidade que necessitou construir
um imaginário de força, de vigor,
de invencibilidade para dissimular
talvez a frustrante sensação de esterilidade
e de impotência provocada pelo mistério
da gravidez e do parto, juntamente com
a convicção de que são coisas às quais,
apesar de sua força e de seu engenho,
jamais poderia ter acesso.
que foi conferida somente à mulher,
foi secularmente subestimada e confinada
ao rotineiro âmbito doméstico e sua
importância diluída até quase desaparecer
entre as pedestres tarefas cotidianas,
das panelas e pratos, das chupetas,
mamadeiras e cadernos escolares,
produto de uma cultura certamente
elaborada só por metade da humanidade.
Meia humanidade que necessitou construir
um imaginário de força, de vigor,
de invencibilidade para dissimular
talvez a frustrante sensação de esterilidade
e de impotência provocada pelo mistério
da gravidez e do parto, juntamente com
a convicção de que são coisas às quais,
apesar de sua força e de seu engenho,
jamais poderia ter acesso.
Tudo isso parece ter raízes tão profundas
que não só em nossa civilização
judaico-cristã encontramos evidências
certas e reiteradas de subestimação,
de submissão, de menosprezo
como reação ao temor que a mulher gera ao
parecer dotada de "poderes" que
escapam completamente ao
arbítrio dos homens.
Os estudos de antropologia têm
demonstrado que é habitual em todas
as culturas que os homens experimentem
certo sentimento de inferioridade diante
da capacidade procriadora da mulher;
sentimento que tendem a reverter
assumindo para com ela condutas
prepotentes tildadas de menosprezo
e humilhação. Um temor que também
deve ter jogado um importante papel
no julgamento e condenação das bruxas
medievais.
Importantes e minuciosos estudos realizados
nos códices maias e astecas põem em relevo
que "O homem, em sua função de genitor,
brilha por sua ausência. Se o nascimento
por partenogênese de deuses tão
importantes como Quetzalcóatl e
Huitzilopochtli não deixa de reforçar a
importância da figura
materna pode suscitar também angústias
e inquietações no seio de uma população
masculina incapaz de legitimar agora a
primazia do falo e, portanto, de seu poder".
Diz a antropóloga francesa Françoise Héritier
que "não é o sexo, mas a fecundidade o que
representa a verdadeira diferença entre o
masculino e o feminino" e agrega Nicolas Balutet
"que, na sociedade asteca, a fecundidade estava
na base das angústias do homem. O rechaço às mulheres que expressam as crenças e as superstições
vai além que o tabu relacionado
com os fluidos menstruais e do parto".
(La puesta en escena del
miedo a la mujer fálica durante
las fiestas aztecas" - Contribuciones
desde Coatepec, UNAM, México).
De modo que, para terminar, pese
aos grandes
avanços alcançados pelas mulheres
em matéria de igualdade de direitos
nas sociedades contemporâneas,
é evidente que nos resta
ainda um longo caminho a percorrer para
superar e remover tabus, usos e costumes
que, não por atávicos e ancestrais estamos
condenadas a suportar eternamente, Eles e
nós devemos encontrar o modo de integrar
nossas diferentes capacidades, de construir
uma relação homem-mulher baseada no
reconhecimento e na aceitação de nossas
diferenças, capaz de afugentar os fantasmas
desse passado que tem gerado e continua
gerando tanta dor e para poder entoar,
juntos, um canto à vida, que é o prodígio
mais maravilhoso com que Deus ou a Criação
nos honrou.
* Arquiteta argentina, editora do informativo semanal "El Grano de Arena", de ATTAC Internacional
(fonte:www.adital.com.br)
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