terça-feira, 24 de agosto de 2010

Caso Eliza Samúdio e a violência contra as mulheres

ABONG *


Adital -


Por Maria da Penha Maia e Paulinha Castro


O caso Eliza Samúdio tem ocupado nos últimos dias amplo espaço na mídia nacional. O país assiste boquiaberto o desfecho desse bárbaro crime. Mais uma vez a vítima é uma mulher e mais uma vez conta-se a mesma história onde a vítima passa a ocupar o lugar do algoz. A condição de mulher agredida dá lugar ao desrespeitoso status de mulher vulgar e promíscua.

Contudo, tal condução não é motivo pra espanto. Essa postura é bem típica da sociedade brasileira. Em qualquer crime contra a mulher invoca-se imediatamente sua vida privada e o julgamento acaba despencando para o lado moral. A ideologia jurídica e moral socialmente aceita continua a impor como regra as mulheres padrões de comportamento que julga como corretos. Quem não lembra do caso Ângela Diniz? Trinta e quatro anos depois continua presente em grande parte da sociedade brasileira a atitude de naturalizar o comportamento agressivo dos homens, que acreditando ser superiores as mulheres, pensam que podem delas dispor como bem quiserem,, trata-las violentamente e até mata-las , pois acreditam também eles que por serem homens estão acima do bem e do mal.

A caminhada de luta, em defesa das mulheres, nos tem mostrado dia a dia que continuamos a pisar em solo árduo.

Os atores sociais responsáveis por impor limites aos agressores insistem na fria interpretação dos códigos e das leis.


A observância do devido processo legal, em nome da tão cultuada segurança jurídica continua a mascarar decisões de legalistas que avessos ao superior interesse dos direitos humanos das mulheres, agarram-se ao normativismo fazendo dessa postura dogmática um entrave para o acesso das mulheres a justiça.


Permanece dormitando nas gavetas dos representantes do estado o desesperado pedido de proteção das mulheres, que vencendo as barreiras do medo e da vergonha, até eles chegam para noticiar suas amargas experiências.


A Lei Maria da Penha, conquista histórica das mulheres vem sendo alvo de interpretações esdrúxulas, contrárias a vontade do legislador. Cultua-se a lei e esquece-se da práxis humana. Esquece-se do devido processo social.


A Lei Maria da Penha, instrumento jurídico que promove o acesso das mulheres a justiça, tem como cerne a sua efetiva proteção quando atingidas pela violência de gênero, baseada no sexo, que atinge as mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. Portanto, preconceitos ideológicos que pautam a Lei Maria da Penha, dividindo e segregando as mulheres, limitando sua abrangência apenas a relacionamentos duradouros devem ser de pronto abolidos, pois tem legitimado o comportamento agressivo de feminicidas em potencial.


A LMP deve ser analisado a partir da dura realidade que as mulheres enfrentam. Não só banalizam a Lei Maria da Penha, como a maculam e a cospem na lata do lixo, aqueles(as) que em nome da legalidade a interpretam reproduzindo um juízo de valor conservador, machista, patriarcal e opressor. Eliza Samúdio é mais uma das muitas mulheres brasileira que são traídas pelo próprio Estado., que não a protegeu quando buscou ajuda , que contribuiu para que seus agressores acreditassem que nada os podia deter, nem o poder do próprio Estado, Estado esse que permaneceu omisso ante a denúncia de violência e coerção que a atingiu na sua .condição de pessoa humana, e pior ainda não aplicou as medidas legais que lhe garantiam proteção quando foi ameaçada de morte.


Os longos anos de experiência nos permitem afirmar que enquanto não entendermos que a violência contra mulher tem suas raízes na opressão que os homens exercem sobre elas, enquanto o Estado não assumir o seu verdadeiro papel de garantir a segurança das mulheres ameaçadas, e enquanto a sociedade continuar a legitimar a cultura machista, muitas mulheres ainda terão sacrificados seus corpos e suas vidas.


A sociedade continuará a conviver com tantos outros Brunos, homens comuns, empresários, esportistas, pseudocidadãos. Às mulheres restará apenas a dor e vergonha.




* Associação Brasileira de Organ
(fonte: http://www.adital.com.br/)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Feminicídio: do privado ao público; do ‘passional’ à associação criminosa

Maria Dolores de Brito Mota *


Adital -

O assassinato de mulheres por questões de gênero, o feminicídio, é um crime cada vez mais reconhecido e há muito denunciado. Mas, a sua reprodução histórica apresenta mudanças que não podemos deixar despercebidas. Essas mudanças indicam mecanismos de atualização cotidiana da violência praticada contra as mulheres no contexto de relações desiguais de gênero que persistem, ainda que já exista uma consciência mundial e nacional contrária a tal desigualdade. No Brasil, apesar da Lei Maria da Penha, instrumento de criminalização dessa violência contra a mulher os crimes contra mulheres se sucedem de forma mais evidente.

Temos assistido nos últimos anos a mídia nacional, particularmente a mídia televisiva, apresentar casos de assassinatos de mulheres por seus ex-companheiros ou companheiros de relacionamento amoroso, que chamam a atenção por sua visibilidade, brutalidade e, em certo sentido, por uma inevitabilidade. Assim o foram os fatos que circunstanciaram as mortes de Maria Islaine de Morais, 31 anos (20/01/2010); Eloá Cristina Pimentel, 15 anos (16/10/2008), Mercia Nakashima, 28 anos (23/05/2010) e Elisa Samudio, 25 anos (desaparecida desde 4/06/2010): todos contendo elementos que indicam a emergência de novos procedimentos no processo do feminicídio do qual foram vítimas.

Identifico como novos procedimentos que indicam mudanças nas circunstâncias dos feminicídios: 1) a realização desses crimes em lugares públicos, sob as vistas de testemunhas, bem como, 2) a formação de associações criminosas para a sua efetivação.

Do privado ao público - a espetacularização do ódio ao feminino

Em se tratando de assassinato de mulher por seus parceiros ou ex-parceiros afetivos e sexuais, o mais comum, tradicional, é aparecer o cadáver da mulher e depois a investigação identificar o feminicida. Eliane de Gramont, assassinada em 30 de março de 1981, aos 26 anos, enquanto cantava no Café Belle Époque, em São Paulo, por seu ex-marido, o também cantor Lindomar Castilho que desferiu cinco tiros em suas costas, deve ter sido o primeiro feminicídio famoso cometido publicamente.

Em Fortaleza, no dia 4 de julho de 2006, o ex-marido de Célia Marilac de Oliveira, 46 anos, assassinaria a ex-mulher à facada na fila de banco de um Shopping Center do Centro da cidade. Mais recentemente, em 2008, assistimos por 59 horas através das redes nacionais de televisão o drama de Eloá, do inicio do sequestro até a sua morte por seu ex-namorado. E as câmeras de um circuito interno de um salão de beleza gravaram a cena do feminicídio de sua funcionária, Maria Islaine (que estava sob medidas protetivas da Lei Maria da Penha), por seu ex-marido que lhe desferiu nove tiros.

Podemos nos perguntar: "O que significa a procura de exposição ao público destes crimes por parte do assassino?". O fato do feminicida não se preocupar em ocultar e, mais ainda, seu querer dar publicidade à sua ação criminosa, revela a vontade de afirmação pública da força e domínio do macho em ‘retomar’ um espaço de poder que ele tradicionalmente demarcava como próprio e que as atitudes de ‘sua’ mulher estão ameaçando. É como se, em sua pretensa hegemonia nas relações de gênero, ele dissesse, em voz bem alta: "Aqui quem manda sou eu".

Uma segunda consideração nos sugere que a procura da telinha da TV para fazer conhecer suas ações criminosas contra a mulher, se torna para o macho uma forma de angariar consensos dos demais machos do seu bando. Mas os novos palanques dos crimes de gênero só fazem ligar os holofotes sobre a crise da hegemonia de uma categoria social em sua guerra contra a afirmação humanizante do feminino nas relações de gênero e na sociedade.


Da reação individual à associação criminosa

Os casos mais recentes de feminicídio que ainda estão na mídia, também chamam a atenção pelo fato de envolverem uma associação criminosa para matar as mulheres. Misael Bispo, que contratou um amigo, vigilante, para ajudá-lo a matar Mércia Nakashima. E Bruno, que mobilizou aproximadamente 10 pessoas no assassinato de Elisa Samudio. Um problema que normalmente é vivido individualmente pelo homem, torna-se uma questão para um crime coletivo, por formação de quadrilha. Em um caso, no de Mércia, embora haja indícios de um contrato financeiro, evidencia-se a relação de amizade e lealdade do ajudante com o feminicida; fato que no caso de Bruno essa relação entre todos os participantes é indubitável, envolvendo não somente amigos homens, mas também mulheres, namoradas atuais e ex.

O feminicídio vai ganhando a característica de "pistolagem", de encomenda, no qual técnicas profissionais de matar e esconder (desintegrar) o corpo tornam-se ingredientes de práticas de matar mulheres, intensificando a crueldade e o ódio na busca de destruição do feminino e de seus significados. A punição pela não sujeição dessas duas mulheres aos seus parceiros foi brutal: uma por não querê-lo e a outra por confrontá-lo e expô-lo publicamente. A arrogância dos seus feminicidas transparece até na atitude de confrontarem o país negando o que está evidente, mas que ainda necessita de fundamento técnico e jurídico para a imputação de culpa e punição.

A espetacularização e a associação criminosa para a efetuação de feminicídios parecem expressar novas formas de sujeição e de violência contra as mulheres, desenvolvidas como reação patriarcal aos avanços na conquista de direitos humanos e da emancipação das mulheres pelas lutas feministas.


* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIF

(fonte:www.adital.com.br)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

As Elizas do Brasil e suas mortes anunciadas

Cecilia Sardenberg *


Adital -

Neste mês de agosto, quando se comemora o quarto aniversário da promulgação da Lei 11.340/2006 -denominada Lei Maria da Penha em homenagem a Professora Maria da Penha, uma vítima da violência doméstica que denunciou o Brasil por negligência às cortes internacionais- vários casos de mulheres brutalmente assassinadas por seus companheiros ocupam as principais manchetes dos jornais do país e da nossa mídia televisiva, demonstrando a relevância e pertinência dessa nova legislação.

Dentre esses casos, tem chamado atenção especial o da jovem Eliza Samúdio. Além do suposto mandante do crime ser um jogador de futebol de certa projeção, a forma em que a jovem foi assassinada e o corpo "desovado" vem chocando a opinião pública. Seu corpo ainda não foi encontrado, mas depoimentos colhidos pela polícia indicam que Eliza foi esquartejada, seus restos mortais jogados a cachorros e os ossos posteriormente cimentados.

Sem dúvida, esse nível de brutalidade é de causar arrepios, principalmente quando se constata que atinge várias outras mulheres, sem que suas histórias ganhem espaço na mídia por não envolverem gente dita "famosa". O que já nos revela o quanto a violência contra as mulheres no Brasil ainda é banalizada. Além disso, no caso de Eliza, como vem acontecendo também com tantas outras vítimas, estamos diante de mais uma "morte anunciada"- isto é, de mais um caso de negligência por parte dos órgãos do Estado no enfrentamento à violência contra mulheres, mesmo quando as mulheres vitimadas buscam justiça. Senão vejamos:

De acordo com as investigações tornadas públicas, Eliza Samúdio viveu uma relação passageira com o goleiro Bruno do Esporte Clube Flamengo, mas que resultou em uma gravidez por ele rejeitada. Pior que isso, em outubro de 2009, quando estava grávida de cinco meses, Eliza foi seqüestrada por ele e seus comparsas e mantida em cárcere privado, sendo agredida física e verbalmente, ameaçada de morte e forçada a uma tentativa de aborto, conforme queixa registrada pela vítima na Delegacia Especial de Atendimento a Mulher- DEAM de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

Nessa ocasião, a delegada de plantão, reconhecendo o risco que a jovem corria e a pertinência da Lei Maria da Penha ao caso, solicitou ao Judiciário a aplicação de uma medida protetiva contra o goleiro Bruno, que o proibiria de se aproximar de Eliza por menos de 300 metros. No entanto, a juíza responsável negou o pedido da DEAM, alegando a não existência de um relacionamento entre as partes envolvidas, e acusando a vítima de "tentar punir o agressor" (...) "sob pena de banalizar a finalidade da Lei Maria da Penha". Desconsiderando o fato de Eliza estar grávida de cinco meses do agressor e, desconhecendo que a Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres, essa juíza, equivocadamente, afirmou que a referida Lei "tem como meta a proteção da família, seja ela proveniente de união estável ou do casamento, bem como objetiva a proteção da mulher na relação afetiva; e, não, na relação puramente de caráter eventual e sexual".

Esse tipo de interpretação nos revela o quanto no pensar Judiciário -mesmo quando expresso por mulheres- permanece em pauta uma ideologia patriarcal, machista, que categoriza as mulheres como "santas" ou "putas", resguardando as primeiras na "família" e tratando as outras como casos de polícia que "banalizam" a Lei. Não é, pois, ao acaso que a cidadania feminina no Brasil ainda é uma cidadania pela metade, já que os direitos das mulheres continuam a ser subjugados aos da "família", o que contribui para a reprodução das relações patriarcais entre nós e, assim, para o crescimento da violência contra mulheres.

Foi o que aconteceu com Eliza Samúdio. A interpretação da Lei a partir de um viés patriarcal, por parte da juíza fluminense, implicou no envio do processo em questão para uma vara criminal, trazendo consequências ainda mais desastrosas. Ali, por descaso da polícia, que deveria ter levado as investigações adiante com a necessária urgência, só recentemente houve algum avanço nesse sentido. Na verdade, só depois do desaparecimento de Eliza se tornar público e ganhar as manchetes, a polícia deu o devido andamento às investigações.

Em janeiro deste ano, em Belo Horizonte, outra jovem, a cabeleireira Maria Islaine, também foi brutalmente assassinada pelo ex-marido, que disparou nove vezes contra ela, a despeito das várias queixas registradas na DEAM. Aliás, tem-se conta de que Maria Islaine fez oito registros de crime de ameaça, que resultaram em três prisões preventivas decretadas contra seu ex-marido, sem que nenhuma delas fosse cumprida. Por isso, apesar de medida protetiva ter sido expedida, ele continuou a procurá-la, ameaçando-a e agredindo-a em sua casa, uma situação registrada em ligações feitas por Maria Islaine para a polícia pedindo ajuda e socorro - mas tudo em vão. Num desses telefonemas, que foi gravado, a vítima reclama: "Tenho uma intimação que a juíza expediu por causa do meu marido, que me agrediu. Eu o levei na Lei Maria da Penha. Era para ele ser expulso de casa. O oficial veio; tirou-o de casa, só que ele está aqui e ainda está me ameaçando". Em outra gravação, que foi anexada ao inquérito policial, o ex-marido ameaça: "Não vou aceitar perder minha casa. Se perder, você vai estar debaixo da terra. Está decidido isso. Já não vou trabalhar mais. Vou tocar uma vida de vagabundo. Se eu perder minha casa, vou te matar". E cumpriu a ameaça, porque não foi preso como deveria ter sido.

Estudos e pesquisas sendo desenvolvidos pelo OBSERVE - Observatório da Aplicação da Lei Maria da Penha, em quase todas as capitais do país, dão conta de que, apesar dos pactos selados com o Governo Federal, são muitas as instâncias semelhantes de descaso e mesmo negligência por parte dos estados da União no enfrentamento à violência contra mulheres. São juizados e varas de violência doméstica e familiar ainda por ser criados ou em funcionamento precário; DEAMs fisicamente mal equipadas e valendo-se de pessoal sem o treinamento e a capacitação necessários; e autoridades que interpretam e aplicam a lei a seu bel prazer, sem o devido preparo e esclarecimentos cabíveis em prol da proteção de mulheres em situação de violência, como no caso de Eliza.

Embora este ano celebremos quatro anos de Lei Maria da Penha, nosso levantamento revelou que algumas capitais pesquisadas -João Pessoa, Aracaju e Teresina no Nordeste, e Palmas, Boa Vista e Porto Velho na Região Norte, por exemplo-, ainda não dispõem de nenhuma vara ou juizado especializado em violência doméstica e familiar contra mulheres, descumprindo assim o que rege a Lei. E em muitas das que já criaram esses juizados, não existem as equipes multidisciplinares para prestar o necessário apoio às mulheres, tampouco uma articulação eficaz com os demais órgãos que devem compor a rede de atendimento às mulheres em busca do acesso à justiça.

Esse descaso se verifica mesmo no tocante às delegacias especializadas - que constituem a mais antiga política pública de enfrentamento à violência contra as mulheres no país e que, figuram, ainda hoje, como principal referência para as mulheres em situação de violência. Embora a Lei Maria da Penha tenha trazido novas atribuições para essas delegacias -com destaque para a retomada do Inquérito Policial como procedimento e as medidas protetivas de urgência- ampliando sua competência e também as demandas que lhe são encaminhadas diariamente, não parece haver um empenho real por parte da maioria dos Estados -apesar dos "pactos"- em criar condições para que as DEAMs cumpram seu papel.

A precariedade das delegacias contribui para que as delegadas titulares criem suas próprias normas, deliberando, por exemplo, pelo não atendimento de casos de violência de gênero contra mulheres que não se incluam na Lei Maria da Penha. Ou então, para que ofereçam resistência a sua implementação, procurando mediar entre vítimas e agressores e fazer uso das malfadadas "cestas básicas" como pena, tal qual se fazia quando a Lei 9.099/95 - responsável pela criação dos JECRIMs, Juizados Especiais Criminais, que banalizavam a violência contra mulheres ao extremo - permanecia em vigor. Identificamos, também, uma prática preocupante: a exigência de duas testemunhas que atestem a veracidade dos fatos relatados pela mulher. Sem a presença das testemunhas, o Boletim de Ocorrência não é registrado. E se exige o agendamento para compare cimento das vítimas e das pessoas para testemunharem a seu favor, o que incorre na desistência de algumas mulheres, por falta de testemunha. Afinal, casais não costumam levar "testemunhas" para o interior dos seus quartos e para o leito conjugal onde ocorrem, em grande medida, os atos de violência doméstica.

Malgrado essa situação, consultas realizadas nas principais cidades do país com mulheres que registraram queixas nas delegacias têm revelado que, em sua maioria, essas queixantes vêem as DEAMs como porta de entrada na sua busca por justiça e proteção frente às ameaças e maus tratos sofridos. Contrário ao que se propaga em relação às vítimas, são poucas as que buscam as delegacias apenas como "mediadoras" de conflitos entre casais. Como Eliza, também essas queixantes buscam medidas protetivas na aplicação da Lei e uma ação imediata como a situação demanda - mas não têm sido atendidas. Algumas têm sido até aconselhadas nas delegacias a voltarem dali a seis meses, quando se sabe que a queixa perde sua validade jurídica quando registrada fora desse prazo. Outras, como Maria Islaine, conseguem as medidas protetivas e até mesmo a decretação da prisão dos agressores. Mas, lamentavelmente, por negligência das nossas autoridades, eles continuam à solta, colocando a vida das mulheres em sério risco. Como bem concluiu uma de nossas entrevistadas: "Por isso que muitas mulheres estão morrendo".

Por certo, as muitas Elizas do nosso Brasil e suas mortes anunciadas, dia após dia, nas DEAMs e juizados de todo o país, demandam de todos e todas nós muito mais do que arrepios. É mais do que necessário e urgente que exijamos dos nossos governantes e legisladores - e dos candidatos e candidatas a esses postos - o compromisso com a implementação e cumprimento da Lei Maria da Penha nos moldes e normas previstas, denunciando no "Ligue 180" e nas respectivas corregedorias todas as instâncias contrárias. Quando a negligência persistir, sigamos o exemplo da Professora Maria da Penha, apelando para as cortes internacionais. Ademais, é imprescindível que nos organizemos para que se processe uma verdadeira reforma no Sistema Judiciário e nos órgãos de segurança pública - que deve começar com os cursos de Direito - de sorte a livrá-los, de vez, das ideologias patriarcais que acalentam a violência contra nós, mulheres, em nome da "família".

Precisamos, sim, fazer valer nossa cidadania por inteiro o quanto antes: uma vida sem violência é um direito de todas nós, Elizas, Maria Islaines e Marias da Penha!



* Profa. do Depto. de Antropologia e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher NEIM-UFBa. Coord. Nacional do OBSERVE, Observatório de Monitoramento da Aplicação da Lei Maria da Penha


(fonte:www.adital.com.br)

domingo, 8 de agosto de 2010

Onde andam os Movimentos de Mulheres?

Frente pelo Fim da Violência contra as Mulheres na Paraíba *


Adital -
No dia 15 de setembro de 2009 publicamos aqui no Adital um artigo (O Movimento de Mulheres da Paraíba se mobiliza contra a violência) partilhando nossa indignação motivada pelos assassinatos de 26 mulheres no Estado da Paraíba. Hoje, estamos aqui outra vez para comunicar a nossa indignação frente ao crescente número de assassinatos de mulheres: só no primeiro semestre de 2010, na Paraíba, ocorreram 27 mortes por violência doméstica.



 



 





Fotos:Gê


Os assassinatos ocorrem sempre com a mesma crueldade, não basta matar é preciso esquartejar, ocultar o cadáver, jogá-lo dentro de um poço, etc. E os assassinos? São os mesmos: maridos, namorados e parceiros na maioria absoluta dos casos, alguém com quem a mulher mantém ou manteve algum vínculo afetivo. Isso significa que, mesmo que as mulheres ponham um fim no relacionamento, não estarão livres da violência. E a impunidade continua.
Quantos desses assassinos estão presos no momento? O assassinato é a expressão máxima da violência doméstica cometida contra as mulheres. A cada mês, porém, cerca de 20 mulheres, vítimas de agressões físicas e verbais, são atendidas na Delegacia especializada da Mulher em João Pessoa. Esse número de atendimentos não reflete a real situação do Estado, pois muitas mulheres, por medo, permanecem em silêncio porque possuem vínculos afetivos e/ou dependem economicamente de seus agressores. Para aquelas que moram no interior do Estado, os obstáculos são ainda maiores.












Fotos:Gê

Desde o ano passado, os diferentes Movimentos de Mulheres, em parceria com organismos de políticas para mulheres e serviços de atendimento a vítimas de violência, criaram uma Frente pelo Fim da Violência contra as Mulheres na Paraíba. Essa Frente vem realizando mobilizações permanentes a cada mês para sensibilizar a população, denunciar os assassinatos, expressar a indignação e exigir das autoridades a efetivação da Lei Maria da Penha, principalmente com a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar, conforme previsto no Art. 14 da referida Lei. Os parentes das vítimas são convidados a participar das mobilizações, durante as quais a população feminina é incentivada a denunciar os agressores através do Disque 180 e do Centro de Referência da Mulher de João Pessoa - 0800-283-3883.
É preciso ampliar a compreensão de que a violência doméstica não é um problema de cada mulher, mas é um problema social que precisa ser enfrentado pelos poderes públicos com políticas eficazes.
Outra ação desta frente é garantir uma presença ostensiva quando acontece uma sessão de julgamento, com a intenção de pressionar os juízes a fim de que não sejam complacentes e omissos.


 













 Fotos:Gê


Por ocasião da última mobilização que aconteceu no dia 15 de julho, 27 mulheres vestiram mortalhas de cor lilás com a inscrição dos nomes das vítimas e a data em que foram assassinadas e segurando, cada uma, uma cruz, seguiram em fila indiana do centro de João Pessoa até o Tribunal de Justiça (TJ). Esse grupo foi acompanhado por um número significativo de pessoas solidárias e de mulheres dos movimentos, que iam entregando panfletos e conversando com as pessoas sobre a tragédia da violência contra as mulheres.
A Frente pelo Fim da Violência contra as Mulheres na Paraíba vai continuar a marcar presença cada mês em algum ponto da cidade, gritando "não" à violência e "sim" a uma vida sem violência! e denunciando a omissão das autoridades locais, o machismo, o sexismo e o racismo que naturalizam a violência perversa e criminosa.










Fotos:Gê


[A Frente pelo Fim da Violência contra as Mulheres na Paraíba é composta por: Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB); Rede de Mulheres em Articulação na Paraíba; Marcha Mundial de Mulheres; Fórum de Mulheres da Paraíba; CEAV; Coletivo Wen-do/ João Pessoa; Secretaria de Políticas para Mulheres/João Pessoa (SPPM); Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres/PB; Centro de Referência da Mulher/JP].

* Várias organizações
(fonte: www.adital.com.br)



terça-feira, 3 de agosto de 2010

"Vamos nos unis e acabar com esse e qualquer outro tipo de violência...Uma vida sem violência é um direito de todos...."




'Ela me pertence'. A violência contra a mulher. Entrevista com Ângela Maria Pereira da Silva

IHU - Unisinos *

Adital -

Ao refletir sobre os crimes de violência contra a mulher, a assistente social Ângela Maria Pereira da Silva define o ato como "um ato de posse, de total possessividade em relação a outro indivíduo, é uma despersonalização do outro. Eu posso dizer que eu sou dona da minha caneta, mas eu não posso dizer que eu sou dona do desejo de outra pessoa". Em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, ela fala sobre a realidade dos centros de atendimento à mulher que vive uma situação de violência e aponta alguns pontos falhos na Lei Maria da Penha e na atuação das equipes das delegacias da mulher. "Percebemos que, na prática, a realidade é diferente do que preconiza a norma. Nós ainda precisamos avançar muito em relação à rede de proteção à mulher. Até mesmo para que haja aplicabilidade da lei dentro do prazo que ela estipula, que seriam de 48 horas para conceder ou não uma medida protetora de emergência", revela.
Ângela Maria Pereira da Silva é, atualmente, docente da Fundação Saint Pastous (Porto Alegre/RS) e assistente social da Secretaria Estadual de Assistência Cidadania e Inclusão Social e do Centro Jacobina (São Leopoldo/RS). Realizou o curso de Serviço Social na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). É especialista em Gestão do Capital Humano, pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação Ciências e Letras (Fapa), e obteve o título de mestre em Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil. Que regiões sofrem mais com o problema da violência contra a mulher?

Ângela Maria Pereira da Silva - Eu atribuo esta realidade a questão da impunidade do homem que está em situação de violência. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha, neste sentido, faz muita diferença. Além da impunidade, outro aspecto importante neste contexto é a questão sócio-cultural da violência entre homens em relação às mulheres. No Rio Grande do Sul, avançamos muito, mas ainda, todos os dias, presenciamos novos fatos de óbito de mulheres por situações de violência doméstica. Entre 2009 e 2010, em São Leopoldo, já tivemos alguns assassinatos, inclusive com requintes de crueldade, de homens que também se sentiram acima da lei e vieram a assassinar mulheres da própria família.

IHU On-Line - Existe um perfil deste homem?

Ângela Maria Pereira da Silva - Não tem como caracterizá-lo. Na realidade, há uma série de fatores que conspiram e que contribuem para uma postura mais agressiva por parte do homem, o que não justifica a prática da violência. Percebemos que muitos dos homens que estão cometendo atos violentos já passaram por situações de violência nas suas próprias vidas, já vêm de lares aonde houve situações de violência contra a mulher e acabam perpetuando isto em suas próprias famílias.


Então, na verdade, esses homens não conseguem ressignificar esta relação de sofrimento e acabam reproduzindo isto com filhos e com suas companheiras. Também temos um número crescente de pessoas que acabam se vinculando à substância psicoativas, o que desperta um comportamento mais agressivo em algumas pessoas. Além disso, o quadro da pobreza e da miserabilidade também afeta o nível de estresse das pessoas e, muitas delas, buscam a força para fazer valer os seus desejos sobre o outro.

IHU On-Line - Por que as mulheres ainda têm medo de denunciar?

Ângela Maria Pereira da Silva - Há um número cada vez mais ampliado de mulheres que estão rompendo com este silêncio. Aqui no Centro Jacobina [1], constatamos que ainda existem fatores que interferem nesse rompimento do silêncio, tais como a dependência econômico-financeira, a questão de não ter uma rede de apoio afetiva, onde a mulher possa recorrer em um episódio de violência. Existe também o fator de um amor que causa perplexidade, é um amor que fere, que maltrata, mas que a mulher quer manter. Nem todos os homens que cometem a violência são os companheiros. Já recebemos denúncias contra netos, filhos, e, às vezes, até mesmo de um empregador. Mas, no âmbito da família, o que nós percebemos é que é uma relação que idealizada pela mulher que, quando acontece uma situação de violência, se desorienta de tal maneira que ela encontra justificativa para os atos do homem.

IHU On-Line - A violência contra a mulher em ambientes que não são familiares se dá de que forma?

Ângela Maria Pereira da Silva - Nós já atendemos situações de violência sexual que acontecem na rua, ou seja, mulheres indo ou retornando do trabalho que foram abordadas e foram violentadas no caminho. Também já denunciaram violência no âmbito do trabalho, ou porque engravidaram e foram constrangidas por isso ou porque em algum momento adoeceram. Atendemos pessoas que trabalham com serviços gerais e foram assediadas por patrões.

IHU On-Line - Em relação à lei Maria da Penha, que falhas essa norma ainda tem?

Ângela Maria Pereira da Silva - A Lei Maria da Penha ainda é muito precoce em relação a outras leis. Mas já percebemos que, na prática, a realidade é diferente do que preconiza a norma. Nós ainda precisamos avançar muito em relação à rede de proteção à mulher. Até mesmo para que haja aplicabilidade da lei dentro do prazo que ela estipula, que seriam de 48 horas para conceder ou não uma medida protetora de emergência. Outra questão importante: se atendemos uma mulher que não tem uma rede de apoio, ela não vai ter para onde ir com seus filhos. O que ela deve fazer se não tiver suporte?


Temos também um índice crescente de mulheres que estão em constante violência doméstica em função da relação com as drogas e ainda faltam vagas suficientes para internação e desintoxicação do público feminino. Há também uma realidade crescente de mulheres em situação de rua, e, esta situação, sabemos que vai culminar, mais cedo ou mais tarde, numa violência sexual ou física. No entanto, a maioria das vagas em albergues públicos é para o público masculino. Existem muitas questões que precisam avançar para que a Lei seja cumprida na sua totalidade. A lei presume que a educação possa combater a violência.

IHU On-Line - Quais são os principais problemas que as delegacias da mulher vivem hoje?

Ângela Maria Pereira da Silva - Aqui em São Leopoldo nós não temos ainda uma delegacia especializada para o atendimento da mulher, nem da criança, nem do adolescente. O que eu percebo é que cada vez mais nós temos que olhar não só para o espaço institucional, mas para a questão da qualificação, das condições de trabalho das pessoas que atendem os "violentados". Não adianta termos uma delegacia para a mulher se a equipe não estiver suficientemente capacitada e sensibilizada para realizar o atendimento ao público.

IHU On-Line - São muitos municípios que não possuem Delegacia da Mulher?

Ângela Maria Pereira da Silva - Acredito que tenhamos, aqui no Rio Grande do Sul, em torno de quinze ou vinte delegacias. Então, a delegacia da mulher ainda não é uma realidade se compararmos o estado com São Paulo, por exemplo. Estamos deixando muito a desejar.

IHU On-Line - Como a senhora vê, no caso de Eliza Samudio, o fato de que uma juíza que analisou a primeira denúncia de agressão da moça, mas não concedeu proteção a ela?

Ângela Maria Pereira da Silva - Do meu ponto de vista, como uma assistente social que atua no enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha está aberta a interpretações e, exatamente por isto, por vezes são feitas interpretações equivocadas. Se uma mulher teve uma relação com um homem e daí nasceu um filho, independente de eles estarem vivendo ou não juntos, ela deveria estar sendo amparada pela lei.


Acontece muito, quando se trata da violência de gênero, antes de analisar o fato, surgirem pré-suposições e preconceitos que interferem no julgamento. No caso da Eliza Samudio, a mídia descaracterizou esta mulher dos seus direitos, porque ela tinha um trabalho X, porque tinha relações familiares Y. Enfim, mostrou-a como uma pessoa não digna de direitos. Então, houve um desrespeito em relação a este caso, não só por parte da mídia como por parte do Poder Judiciário.

IHU On-Line - O caso de Eliza é emblemático para compreendermos as relações de gênero na sociedade contemporânea?

Ângela Maria Pereira da Silva - Creio que sim, porque, na realidade, estamos falando de alguém que tem um relativo poder e que já vinha demonstrando, em várias situações, o preconceito de gênero. Parece que isso não foi levado a sério. A prova disso foi a forma como a trataram durante a primeira denúncia que ela fez, quando foi submetida a tomar medicamentos abortivos e foi violentada fisicamente. Por conta disto, me questiono:l qual foi o apoio que esta moça teve do serviço que a atendeu naquele momento Qual foi a rede de apoio afetiva que ela teve? Isso porque, depois das denúncias, ela voltou a confiar neste homem, negando inclusive orientações que a advogada lhe deu. Confiando numa nova promessa, ela vai ao encontro do homem que a ameaçou, sem se resguardar, sem ir com alguém da família ou alguém de sua confiança e, com isso, estava vulnerável ao que supostamente tenha acontecido.

IHU On-Line - Os assassinos de Eliza e da advogada Mércia podem ser considerados produtos de uma sociedade com resquícios patriarcais?

Ângela Maria Pereira da Silva - Sim, podem. Na verdade, eles mostram muito desta esquizofrenia social que vivemos, onde é permitido violar não somente a mulher, mas também a pessoa idosa, os deficientes, ou seja, qualquer pessoa que é dita diferente da maior parte da sociedade em que vivemos. As pessoas não têm paciência, elas sempre estão sendo pressionadas pelo tempo, pelo acúmulo de tarefas. Tudo isso faz com que a pessoa vá se movimentando em um processo de irracionalidade em que não consegue mais entender que o respeito tem que prevalecer nas relações.

IHU On-Line - Podemos dizer que o crime passional é um ato de ódio?

Ângela Maria Pereira da Silva - É, antes de tudo, um ato de posse, de total possessividade em relação a outro indivíduo, é uma despersonalização do outro. Eu posso dizer que eu sou dona da minha caneta, mas eu não posso dizer que eu sou dona do desejo de outra pessoa. E, nestas situações onde a mulheres é assassinada há muito a presença do sentimento de posse, onde o outro não é mais o outro, ela é minha, ela me pertence, se não fica comigo não fica com ninguém.

IHU On-Line - Como modificar os padrões culturais de opressão?

Ângela Maria Pereira da Silva - Temos que pensar nas gerações que estão se formando, porque hoje nós estamos percebendo um nível crescente de violência entre adolescentes. Há muitos casos de, no fim de um namoro, o menino adolescente tirando a vida da ex-namorada, atirando contra a namorada, causando um dano físico ao corpo desta menina. Isso já está acontecendo na geração que está aí. Por isso, temos que atuar na prevenção, trabalhando nas escolas com os pequenos e com as famílias. O atendimento à família faz com que se mude toda uma relação de conflito. Na família pode-se trabalhar todas as diferenças de pertencimento.

Notas:
[1] O Centro Jacobina atende mulheres que sofrem violência física, psicológica, patrimonial, moral e sexual, o centro faz parte da Coordenadoria Municipal da Mulher (CMM). Situado na Rua Lindolfo Collor, 918, o horário de atendimento é de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h.


* Instituto Humanitas Unisinos

(fonte: http://www.adital.com.br/)